Tudo começou em dezembro de 2019, quando notícias vindas do Oriente, em especial da China, começaram a dominar os telejornais. A China agora não era apenas um novo gigante que emergia, mas era um gigante que tombava aos poucos, como nos filmes, que primeiro se ajoelha, depois apoia a mão no chão, para finalmente cair. Seus habitantes eram consumidos por um vírus letal, que se espalhava pelo ar. Ninguém sabia o que era, como era, se havia sido desenvolvido em laboratórios para destruir o mundo, como diziam as notícias falsas… Não havia, a princípio, preocupação que o vírus chegasse em outras partes do mundo, ainda mais aqui, no Brasil. Essa preocupação só veio mais tarde, quando o vírus de fato, já havia começado a migrar.
Vírus, criaturas tão diferentes de nós e tão parecidas! Para migrar não há burocracia. Eles precisam de hospedeiros, então, se querem conhecer o Japão, viajam pelo ar, buscando uma vítima mais elaborada que eles próprios. Se instalam de corpo em corpo, até dar a volta ao mundo. Não tem visto de permanência, apesar de preferirmos que tivessem visto de impermanência! E tão parecidos aos homens. Como bem pontuaram as roteiristas de Matrix (as irmãs Lilly e Lana Wachowski), “quando cheguei nesse planeta tentei classificar sua espécie, vocês não são realmente mamíferos, cada mamífero nesse planeta tenta buscar um equilíbrio natural com seu meio ambiente, mas, vocês, humanos, não, vocês vão para uma área e se multiplicam até cada recurso natural ter sido consumido e, então, mudam-se para outra área. Há um outro organismo que segue o mesmo padrão, o vírus” (tradução livre)
Lembrei dos jogos para celular de como criar vírus e como espalhá-lo de modo a dizimar os habitantes do planeta. Pensei que apenas mentes doentes poderiam baixar esse jogo, mentes mais doentes, o teriam inventado. Assisti com olhos críticos, os chineses, que como nós brasileiros, estão espalhados pelos quatro cantos do mundo, serem discriminados apenas por serem chineses, portadores ou não do vírus. Ninguém queria os chineses ou esse covid por perto.
Assustada vi o vírus chegar justo como na propaganda do jogo, em menos de dois meses ao Brasil. Descobri que ele já estava aqui, silencioso. Foi noticiado em fevereiro no carnaval de Salvador. Uma pequena nota, simplesmente, nada que chamasse à atenção.
No começo, sem muitas certezas, a população foi adotando, aos poucos um comportamento nunca antes visto. Nada de abraços, de cumprimentos de mãos, de toques. As roupas precisavam ser lavadas a cada aventura à rua. Além do uso de álcool gel e máscaras. Usadas como acessórios, as máscaras eram colocadas no queixo, pescoço, nas mãos. Até hoje, vejo isso. Reconheço que seguimos no escuro, a população nada sabe, não capta tão bem a dimensão de tudo o que estamos vivendo. Acho até que não dá para captar…
Foi adotado o sistema de home office, lockdown – por que, meu Deus, com 11,3 milhões de analfabetos, o termo usado para fazer o pedido ao povo que ficasse em casa, foi cunhado em inglês?! Quem pôde ficou em casa. E esses, como eu, estão em casa até hoje.
A China, um gigante bem organizado, caiu e já está se erguendo. Os demais países que ligam minimamente para a humanidade, também. Já no Brasil… Esse país feito na raça, no ferro, na lapada, no fogo, padece… Porque o governo federal olha apenas para o próprio umbigo e mostra, explicitamente, que não liga para a população.
Olhando em volta, vi muitos conhecidos se contaminarem e conseguirem se curar, mas vi também, outros partirem. Ouvi uma amiga chorar ao telefone, porque sua mãe, apesar de todo o cuidado, se contaminou e foi para o hospital. Segue entubada…
Em um ano em casa, voltei a ser professora para meu filho. Vi a importância ímpar da escola, para que a criança tenha referências infantis, para a auto estruturação, para a formação de vínculos, enfim, para que a criança tenha outra criança como referência para seguir sendo criança e não se espelhe unicamente em adultos.
Me vi surtar, melhorar, surtar, me despir, me vestir, num ciclo intenso e incessante. O enlouquecedor que é se estar numa prisão e ela ser a sua casa. Ninguém achou que fosse durar tanto, ninguém sequer quer pensar que se seguirmos assim, desgovernados, durará quatro anos ou mais (tempo para que toda a população brasileira seja vacinada)
Senti tudo que todos sentiram, insônia, ansiedade, tristeza, desesperança, medo, raiva, nojo, alegria, orgulho do Butatan… Lidei e lido da melhor maneira que posso, com a bagagem de conhecimento que tenho, como todo mundo.
Mas em dias como os de hoje, quando coloco a cabeça na janela para ver o céu, sentir o sol, respirar fundo, não consigo evitar de pensar que estamos num período escuro. O Brasil, desnutrido, de humanidade, com muitos em casa, com outros nas ruas, indo para os seus trabalhos, tendo que se expor, alguns por opção, outros não. Mas com milhares sem casa, vagando com suas máscaras nas mãos, questionando se preferem morrer de coronavírus, tiro, porrada, ou fome, a única certeza, é a morte, porque a invisibilidade é garantida…
Mesmo achando que após a escuridão vem a luz, é dificílimo viver esse momento. Porque não sei se estaremos aqui para desfrutar da luz… Porém, como a esperança é mestra. Ela vem em pequenas mensagens, como sementes no caminho… Hoje, esse dia em que eu estou escura, essa amiga, que está com a mãe hospitalizada, me ilumina. Disse que o hospital, em Salvador, onde está a mãe, criou uma sessão de cartas, para que os parentes pudessem se comunicar com seus entes queridos e isolados. Todos os dias, as cartas são higienizadas e lidas a todos, entubados ou não. E o hospital, retorna aos escritores comunicando a leitura de suas cartas. E a equipe insiste, “escrevam, eles precisam saber que estão aí, precisam lhes ouvir”.
Por isso, hoje, decidi escrever. Primeiro porque acredito que precisamos expressar tudo isso. Esse furacão que abalou e abala nossas vidas por dias sem fim e sem data de partida, que batizaram de coronavírus. Segundo porque acho que encontrarei pares, ressonância. Terceiro, porque acredito que quando escrevemos, alguém irá nos ouvir.
