Nossa criança interior: que sejamos adultos o suficiente para curá-la!

Freud, esse desbravador do inconsciente, abriu uma porta imensa, que
nós, “reles mortais”; uma porta que não estávamos, e creio que ainda
não estamos, preparados e dispostos a olhar. Ele focou seu olhar no
inconsciente e na criança. E trouxe essa proposta de olhar com olhos
frios para essa criança, que tem que se adaptar, que tenta manter-se
viva e, por isso mesmo, se alimenta avidamente da dinâmica familiar,
para seguir sendo nutrida de amor, de calor, da presença do outro e, é
claro, de alimento. Essa criança que busca o próprio prazer e às vezes
(vezes demais), é guiada por caminhos indesejados.

Graças às descobertas de Sigmund, o cérebro e suas memórias se
tornaram foco de estudos científicos e se descobriu que nossa memória
para eventos só passa a atuar após os três anos. Essas memórias vão
para uma parte do cérebro chamada de hipocampo, que as organiza. Mas e
aquelas anteriores ao terceiro aniversário? Essas ficam registradas no
corpo e numa parte do cérebro chamada de amígdala!

Criamos assim padrões de funcionar. Portanto, se isso funciona, segue
na minha memória, isso não, eu a excluo. Isso também se aplica ao corpo, aos gestos, a forma de se mover, aos nós musculares. Parece simples, mas não é.
Por isso, o cérebro divide as memórias, de curto prazo, de longa data,
de procedimento, tudo para que possamos ser economistas em nossas
ações e, consequentemente, no nosso proceder.

Nossa memória inclusive nos avisa que conteúdos podem fazer nosso
sistema ruir e quais dessas lembranças “perigosas”, devem ser
recalcadas ou sublimadas, na mente e no corpo (que são e funcionam como um só). Brilhante o cérebro, brilhante Freud, por ter tido a sagacidade de perceber tudo isso e ainda notar que algumas memórias ficam esquecidas, mesmo quando queremos lembrá-las arduamente. Essas, ele batizou de ato falho.

Mas o pai da Psicanálise teve seu ponto luminoso mais alto, para mim, quando percebeu que tudo que nos passa é guardado na nossa criança,
essa que nos acompanha ao longo da vida toda e que deixamos
transparecer de tempos em tempos

A criança, tão aberta, tão exposta e tão inteligente, percebe numa
velocidade impressionante a dinâmica familiar e a absorve, sem
questioná-la – claro que não é papel da criança, questionar; seu papel
é se adaptar, e isso, ela faz muito bem.

A criança que fomos e que somos, segue carregando o jeitão de andar, a forma de brincar, a forma de se excitar. Segue reproduzindo em casa,
no trabalho, na vida, os papéis de outrora. Então, por exemplo, a
comida que conforta será a mesma de antes… A criança ferida hoje é, ainda bem, enfocada por muitas técnicas.

Ela precisa mesmo ser o foco, mas precisamos, mais do que enfocar a
criança, tomar nosso lugar de adulto e dar a ela o que ela precisa, o
amor, a segurança, o conforto, o estímulo necessário para que não se
tenha que passar a vida reproduzindo padrões que não, necessariamente
são seus e, não necessariamente, se quer manter, conscientemente.

Fiz muitos anos de terapia. Mas, cada vez que chegava perto das dores e memórias da infância, fugia. Conscientemente dava desculpas
plausíveis, falta dinheiro, falta tempo etc. Mas na verdade, era da
falta que eu fugia. Da possibilidade de entrar em contato com algo que
eu não achava, inconscientemente, que tinha recursos para tal. Então,
fazia o que vejo muito dos meus clientes fazerem… me mantinha na
busca de me descobrir, ao mesmo tempo que me esquivava da descoberta!
Com foco na libido, no inconsciente e na infância, Freud abriu portas
para leituras corporais, técnicas de educação somática e outras tantas
linhas de terapia. Nós seguimos buscando, chocando-nos com os
resultados, contestando-os, fugindo e buscando novas técnicas. Fato é
que nossa mãe e nosso pai deixam em nós marcas perenes que nos moldam,
nos consolam, nos atrapalham e nos fazem parar ou seguir adiante.

Fugindo ou não das respostas, para sermos nós mesmos é preciso
empreendermos uma busca e com coragem seguir adiante. Só assim,
ultrapassaremos nossas dores, nossas relações tóxicas, nos ciclos, que
por vezes, parecem incessantemente infinitos! É preciso que nos
curemos daquilo que nos atrapalha e agradecer por todo o resto, porque
toda nossa vida nos mostra como achamos que a vida vale ser vivida.
Viva a Freud, a seu pioneirismo, a essa sua criança, que foi explorar
o mundo que havia sob a barra da saia da mãe e descobriu um mundo
novo!

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