Eu, Masoquista?!

          A primeira vez que descobri o significado da palavra masoquista foi numa conversa entre meus pais, onde eles falavam sobre um tio. Percebi que sempre que se referiam a ele, como masoquista, referenciavam minha tia como sádica. E aí, eles juntaram os dois, numa outra palavra inédita, “sado-maso”. Eu já estava perto de ingressar na faculdade e aquela conversa me levou ao dicionário. Não podia ir ao ensino superior, desconhecendo o significado daquilo tudo. Dos idos dos meus dezesseis anos, entrei em contato com o nome do criador dos termos, Sigmund Freud e li que seus estudos sobre infância e desenvolvimento juvenil o haviam levado a definir, o sádico, como aquele que se excita
sexualmente com o sofrimento (qualquer que seja) do outro; e o masoquista, como aquele que se excita sexualmente em ser humilhado, em sofrer dano físico, moral ou psicológico. Descobrindo o significado,
eu, como muitos, comecei a usar e a popularizar, os conceitos de Freud. Se um autor consegue atingir a comunidade geral, creio que ele está trazendo em seus conceitos, verdades coletivas, que tocam a
todos!

          Alguns anos mais tarde, me vi motivada, sem ter muita certeza do porquê, em fazer um curso de formação em Vegetoterapia de Wilhelm Reich, ex-aluno de Freud, que compreendia que as castrações  percebidas na Psicanálise ficavam escritas e fixadas no corpo. E lá estava ele, o conceito do masoquista agora não apenas uma teoria, o conceito ainda tinha um formato de corpo. O formato de corpo de um masoquista tende a ser muscular. Independente do peso do indivíduo, seu corpo tem um tônus evidente que se mantém constante. O tônus do masoquista vem de um pedido inconsciente do corpo em manter bem resguardado dentro de si aquilo que faz a pessoa se sentir envergonhada ou humilhada.

          Mas um masoquista não sai por aí vociferando ser um masoquista, ao contrário, é parte da sua chaga ser invisível. Sua ferida, por sinal, está vinculada a algum momento da fase anal quando é preciso haver uma punição para perpetuar o desejo. Culpa-se por sentir desejo e pune-se a si mesmo por isso. Mas o masoquista acaba sempre por encontrar seu algoz, por atraí-lo e se sentir vinculado a ele, sem conscientemente saber a razão.

          Alexander Lowen, um ex-aluno de Reich, vai além. Postula que o masoquista, nem sempre é apenas isso. Ele sugere que temos muitas máscaras para esconder nossas feridas e um caráter acaba por esconder o outro. Portanto, às vezes, vemos uma pessoa fixada na fase oral, um oral reprimido, por exemplo, mas sustentando essa oralidade, um masoquista, colado no self, tentando se manter seguro e incógnito. 

           O Icorpo advém dos conhecimentos produzidos até a data de sua criação dentro da Psicanálise e de seus sucessores, inclusive os supra-citados. A primeira experiência se baseia numa conversa, onde a pessoa conta sua história. A segunda, uma investigação, onde o investigador e investigado é o próprio  cliente.

          Numa sessão em que pedi que um desenho aleatório, sem forma específica foi feito, a pessoa a minha frente era fisicamente forte, financeiramente estável, mas era só começar a falar dela que um número infinito de queixas brotava. Ela, de olhos fechados, desenha um boneco de neve. Não há exemplo melhor de um corpo masoquista!

         Ela me fez pensar em minha própria masoquista. Presa em relacionamentos abusivos, num ciclo longo, onde independente da relação, lá estava eu submissa, aguentando. E as relações não precisavam ser de cunho sexual. Essa cliente me fez olhar minha fase anal, minha constante fixação em segurar as fezes, quando criança e o quanto isso segue como símbolo pro resto da vida. Segurar, no meu caso, para permitir que o outro se solte – na época, minha irmã fazia côco em todos os lugares, abaixava onde fosse e com roupa ou sem, excretava. Isso me deixava mortificada e ver a expressão dos meus pais, me fazia sentir pior, como se fosse eu que estivesse agindo daquela maneira. Minha reação infantil foi conter o côco.

          E isso se torna tão simbólico que percebi que fui repetindo nas pequenas coisas. Por exemplo, dançando contato improvisação, não admitia ser sustentada, não confiava em me deixar carregar pelo outro. No ballet, não me sentia leve para saltar. Meu corpo me parecia estar sempre sofrendo com o “segura”, tinha uma pochete na barriga e ela me incomodava muitíssimo, especialmente quando ficava sem roupa. Não evacuava em locais públicos, não o fazia se tinha gente na minha casa perto do banheiro. Enfim, sofria com a contenção e com sua consequência, os gases. Aquilo que nos incomoda está sempre ali, agarrado as suas entranhas, protegendo sua ferida, a acobertando.

          Se, “o masoquismo caracteriza-se por fantasias, impulsos ou comportamentos sexuais envolvendo atos reais (não simulados) de ser humilhado, espancado, atado, ou de outra forma submetido a  sofrimento físico ou psicológico, o que é sexualmente excitante para o indivíduo”, não posso afirmar que sou masoquista, afinal, nunca tive fantasias desse tipo. Mas, que nome dar a esse algoz que em mim habita?

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