A primeira vez que entrei em contato com pessoas consideradas “loucas”, foi num manicômio, desativado posteriormente pelo Estado, pertencente ao Hospital Irmã Dulce, em Salvador-Bahia. A visão era aterradora, vestidos com roupões do hospital, sujos de urina e às vezes, fezes, eles se apoiavam nas paredes ou nas grades e gritavam, agitavam os braços, repetiam gestos incompreensíveis para mim; ficavam boquiabertos, olhando o nada, como se vissem uma luz linda, só visível para eles. Morri de medo. O desconhecido exposto assim, a sua condição mais instintual; a desorganização explícita – numa vida que pede uma constante organização – me encheram de pavor. Temia a falta de limites deles. Não sabia se podiam me machucar ou se essa “liberdade delirante” era o que me afetava. Vê-los ativava meu medo de que eu mesma pudesse enlouquecer. E eu não gostaria de vegetar viva. Porque o montante de medicamentos que lhes era oferecido era demasiado e parecia apagar toda e qualquer sombra de consciência.
As cenas vividas no manicômio duraram um dia, aconteceram há vinte anos atrás, mas me marcaram a alma até hoje. Tanto que só no ano passado, ao entrar em contato com a Psicologia Analítica e suas inspirações no Brasil e no mundo, que graças à história da Dra. Nise da Silveira, tive coragem de assistir dois filmes nacionais sobre a loucura. Ambos muito bons e extremamente impactantes e mostram o quanto o cérebro humano, por mais estudado que seja, segue sendo um mistério. São eles, Bicho de Sete Cabeças, estrelado por Rodrigo Santoro que conta a história de Neto, que é internado num hospital psiquiátrico pelo pai, após encontrar maconha em meio aos seus pertences. Bicho de Sete cabeças vem como uma denúncia aos abusos cometidos por hospitais psiquiátricos e foi uma voz que veio a somar no movimento anti-manicomial – que pregava a liberdade do paciente, ao invés do isolamento. O outro, “O Senhor do Labirinto”, estrelado por Flávio Bauraqui, conta a história da maior referência brasileira de arte moderna com sucata e outros objetos metálicos, Artur Bispo do Rosário, um jovem sergipano que acreditava receber ordens divinas para criar. Todas as suas obras são confeccionadas de dentro do hospital psiquiátrico, onde passa a maior parte de sua vida.
Dos filmes que vi e do medo que senti, a loucura e os ditos “loucos” vêm sendo tratado com medidas paliativas, abusos, isolamento e descaso. Afinal, ninguém até a chegada de Nise conseguia ver o humano num ser insano, apenas um objeto de estudo, fonte de experiências. São poucos os profissionais que tem a coragem de se debruçar sobre esta área. Nise criou um método sensível, rico e humano. Espero que ele seja seguido até hoje. Mas, afinal, quem foi Nise da Silveira?
Alagoana, foi para Salvador-Bahia estudar Medicina. Seu pioneirismo começa aí. Foi a única mulher da turma. Mais tarde, já Psiquiatra, integra o corpo de comunistas brasileiros, por concordar com as ideias e ideais marxistas. É denunciada e presa. Após o exílio, muda-se para o Rio de Janeiro, com o intuito de ter mais possibilidade de trabalho. Lá, é contratada pelo Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II. Desprezada por não comungar com os procedimentos padrões para tratamento dos doentes mentais, é transferida para a Seção de Terapia Ocupacional, área desprezada pelos “grandes” médicos do hospital, sem aporte de recursos financeiros e destinada aos doentes de menor interesse.
Seu pioneirismo, amor à profissão, compaixão pelo outro, sua empatia e ainda seu brilhantismo emergem! Ela usa como recurso para seus “pupilos”, pincéis, tintas, telas em branco, giz de cera e argila. E pede para que eles expressem o que viesse à tona. Assim, a doutora consegue não só que seus pacientes entrem num estado mais sociável, mas que também comecem a dar vazão à tudo o que os angustiava internamente. Ela usa da criatividade como forma de comunicação e organização dos conteúdos inconscientes e logra!
Traz para o setor animais de rua, por ver nos bichos, aliados na interação terapêutica e social dos seus pacientes. É nesse ínterim que entra em contato com o trabalho, também pioneiro,de Carl Gustav Jung que envolvia mandalas – desenhos circulares cujo centro representa o self, que simbolizam uma tentativa interna de cura e organização do uno, da totalidade do ser. Ela fica surpresa ao perceber que seus pacientes desenhavam mandalas. Envia uma mostra do seu trabalho ao médico, que a aprova com louvor e segue em comunicação com ela. As obras acabam reunidas no Museu de Imagens do Inconsciente, na Suíça e são inauguradas pelo próprio Jung.
A trajetória de Nise é contada no filme, “O Coração da Loucura”, filme dirigido por Roberto Berliner, que também foi um dos roteiristas, estrelado por Glória Pires. Este é um daqueles filmes para você que deseja se inspirar, descobrir e se sensibilizar na forma de lidar e tratar seus clientes e a você mesma(o). Nise foi uma guerreira a frente do seu tempo e desejo que muitas como ela surjam no horizonte. O que precisamos hoje é de gente que tenha coragem pra ver as pessoas como são, tirar o melhor delas, ao invés de se acovardarem frente as dificuldades do outro e às próprias! Salve a
Dra. Nise da Silveira!