Uma cliente, ao entrar em meu espaço, parecendo mortificada, sequer esperou que a cumprimentasse e, num rompante, começou a narrar o último acontecimento que havia lhe tocado muitíssimo. Após uma série de pesadelos com ladrões, que ora lhe amarravam, ora lhe tiravam algo; com invasões de sua casa, depredações da mesma, havia se interado que o prédio onde morava havia sido invadido por bandidos.
Ofereci um pouco de água, pedi que se deitasse e fizesse alguns movimentos de liberação das cadeias musculares e, conseqüentemente, soltura da sua respiração e circulação. Aí, pedi que se sentasse e contasse novamente seus sonhos de modo mais detalhado. E lhe perguntei se já havia se sentido assim na vida real.
Essa pessoa vem de uma história antiga de invasão, onde os seus pedidos e desejos não eram nem vistos, nem atendidos; foi uma dessas crianças fruto de uma prole numerosa e sendo a mais velha, foi incumbida de olhar, cuidar e nutrir seus irmãos – coisa que faz até hoje, mesmo após o falecimento dos pais, mesmo o mais novo de sua família tendo acabado de completar quarenta e quatro anos..
Como ela própria não conseguia ver essa associação, lhe pedi que seguisse um passo a passo para descoberta do significado de seus sonhos. Pedi que escrevesse num caderno o sonho completo, da forma como se lembrava dele; que o fizesse assim que abrisse os olhos. Que logo após tê-lo escrito, que sublinhasse as palavras que lhe parecessem mais importantes. Que criasse associações com os itens sublinhados e que os relacionasse entre si. E, por fim, que, em voz alta, contasse novamente o sonho. Após isso, que se questionasse como o sonho lhe parecia agora.
Na sessão seguinte ela voltou. Não havia conseguido escrever o sonho ou fazer qualquer coisa que lhe havia sugerido. Os pesadelos lhe davam muito medo e ela não se sentia com coragem suficiente para olhar para eles. Sugeri que fosse para uma amiga terapeuta, coisa que ela também, considerava desnecessário. Ela acreditava que os problemas que temos são unicamente nossos e não há ser vivo que possa nos ajudar a solucionar, apenas nós mesmos… Até hoje, ela não voltou a falar dos pesadelos, só da hipertensão e das dores lombares e das questões no fígado… como se isso fosse algo natural, algo autorizado – o que de fato deve ser, mas ela não nota que isso está relacionado aos pesadelos, são sintomas deles…
Mas, como dizem, é sempre mais fácil enxergar a questão do outro, não a própria. Notei que eu mesma passava por um momento de muitos sonhos, dos quais eu não conseguia me lembrar, por não estar fazendo o passo a passo que havia sugerido à minha cliente. Resolvi levar as partes daquilo que lembrava para minha própria terapia e com seus pedaços seqüenciados, vi um monte de coisas que me deixaram estupefatas!
É preciso ter coragem, de fato, para se olhar. Para ouvir aquilo que você nega. Bate na resistência, se apaga, se sublima, se recalca, mas lá vêm eles de novo, em seus sonhos, vivos como nunca, porque esses conteúdos inconscientes não sofrem, como nós, a ação do tempo. E a criança que se foi, a adolescente que se era, a filha, a esposa, a mãe, a profissional, são pedaços feridos, remendados de si, com a cola do desejo de seguir vivendo, como se cada um de nós fosse um enorme patchwork, que precisa ser re-costurado, com novos remendos que “conversem” com os anteriores de tempos em tempos.
Não sei se concordo com Freud sobre a ligação dos conteúdos inconscientes (dos símbolos que o id consegue levar aos sonhos) ao sexual. Os vejo, na minha humilde opinião, mais associados às questões infantis, associadas aos traumas ou as vivências mal resolvidas. Mas estou francamente de acordo com a acepção de Erich Fromm,
“ao tratar especificamente da teoria freudiana da interpretação dos sonhos, reconhece que suas descobertas neste campo, por si só, seriam suficientes para elevá-lo à condição de uma das figuras mais notáveis na ciência do homem.”
Porém, tampouco descarto essa possibilidade, da relação com o sexual… Porque a primeira vez que fui a uma psicanalista, quando tinha vinte anos, lhe contei um sonho, que ela, sem subterfúgios, relacionou o conteúdo a um desejo sexual. Não preciso dizer que meu choque foi tal, que eu, como minha cliente, não toquei mais no assunto, mas, fui ainda menos corajosa que ela, abandonei a Psicanálise, passei por outras terapias e só voltei para essa técnica, há 2 anos atrás…
